Seria o humano a pior parte do mundo? Afinal, as grandes mazelas enfrentadas pela humanidade são produzidas por ela própria. A literatura e o noticiário deixam isso claro, mas viajar faz a gente ver de perto o que a História diz a nosso respeito. Como o Khmer Vermelho, regime que dizimou o Camboja e deixou marcas profundas no exótico país do Sudeste Asiático. Na capital, Phnom Penh, nós visitamos o museu Tuol Sleng, colégio transformado na Unidade de Aprisionamento e Interrogatório S-21. Somente neste local, cerca de 20 mil pessoas foram mortas. Apenas 12 conseguiram sobreviver.
O movimento autointitulado revolucionário, teoricamente baseado na ideologia comunista, tinha a pretensão de eliminar o caráter urbano do país, considerado corrompido por eles. A ideia era substituir toda a estrutura social cambojana por uma “mais pura”, forte e dinâmica. Para isso, com a população rural sob orientação e domínio dos ditadores, foram cometidas inúmeras atrocidades. O Partido Comunista do Kampuchea chegou ao poder em 1975, após o fim do governo republicano do general Lon Nol, apoiado pelos Estados Unidos. Os constantes bombardeios norte-americanos ao Camboja, destinados a conter os guerrilheiros que haviam ganhado força ao se juntarem com a corrente vietnamita, acabaram impulsionando o Khmer Vermelho, uma vez que as populações das áreas atingidas aderiam em massa ao movimento.
Logo, o líder Pol Pot e seus comparsas ordenaram a evacuação das cidades e áreas urbanas em direção às fazendas coletivas. O trabalho forçado era imposto sob duras condições, com alimentação escassa. Religiosos, intelectuais, professores, artistas ou qualquer pessoa que dominasse determinado conhecimento era executada. Todas as escolas foram fechadas e, na maioria das vezes, transformadas em local de tortura e prisão. Enquanto os adultos sofriam todo tipo de terror por estarem “contaminados pelo capitalismo”, as crianças eram doutrinadas e envolvidas em torturas e execuções. Livros eram queimados, hospitais, fábricas e bancos foram extintos. Pessoas de origem não-cambojana eram perseguidos e executadas. Homens e mulheres foram obrigados a casar em cerimônias coletivas para estimular a natalidade. Sorrir, chorar e manifestar afeto ou outros sentimentos também era proibido. Há até relatos de canibalismo por parte dos torturadores. Resultado: 1,7 milhão de cambojanos, que representava 25% da população, morreram durante quatro anos de massacre.
O Khmer Vermelho foi derrubado pelo Exército do Vietnã em 1979. Os guerrilheiros, no entanto, habitaram uma selva próxima à fronteira com a Tailândia até 1998, quando Pol Pot morreu. No entanto, a justiça também demora a ser feita por lá. Os octogenários que formavam a alta direção do regime já foram condenados, mas continuam respondendo por outros crimes. São eles: o ex-número dois da organização Nuon Chea, de 88 anos; o ex-chefe de Estado Khieu Samphan, de 83; e Kang Kek Lev, conhecido como Duch, ex-diretor do S-21. A decisão final é aguardada para o final de 2017. Isso se a política cambojana permitir, uma vez que alguns personagens atuais e membros do Governo tem em seu currículo um carimbo como membro do Khmer Vermelho, como o atual primeiro-ministro, Hun Sem.
Apesar de muitos duvidarem de um eventual retorno do regime, essas faíscas ainda assustam alguns cambojanos. A grande maioria prefere não comentar o assunto. Apenas três locais conversaram com a gente sobre o regime. O dono de um hotel onde ficamos nos disse que o avô materno desapareceu em uma das prisões. Por essa razão, sua mãe, enquanto professora, luta para essa história não ser esquecida na escola onde trabalha (o fato é pouco comentado também em sala de aula por recomendação indireta das autoridades). Já o pai dele não fala sobre o regime, pois alguns de seus familiares fizeram parte do Khmer Vermelho. Há ainda quem acredite que o episódio seja uma lenda, afirmando que os vestígios do terror não passam de objetos cinematográficos. Algumas instituições investem em ações para manter essa triste memória a fim que ela não se repita no país. A visita ao cenário de tamanha barbárie calou a gente, tornando essa dor nossa também. Poderia até ser confortável se esconder da verdade, caso não fosse ela a única capaz de nos salvar de nós mesmos.
O mundo coleciona fatos abomináveis e lamentáveis desde a Roma e a Grécia Antigas até os dias de hoje. As Campanhas de Alexandre, Tróia, as Cruzadas Medievais; o terror das colonizações (vide a matança cometida pelos europeus no continente americano) as guerras dos Trinta Anos, do Ópio e a do Paraguai; a Primeira e a Segunda Guerra Mundial; Hiroshima e Nagasaki; as ditaduras militares, como a que assombrou o Brasil e alguns países vizinhos; As quedas do World Trade Center; Afeganistão, Iraque, Líbano; mais recentemente, o terrível Estado Islâmico; as ondas separatistas mundo afora. O fato é que Muammar Kadafi, Hitler, Pinochet e Kim Jong, entre tantos outros, dão apenas nome ao extremismo que habita na essência humana. Tanto que eles não cometeram seus crimes sozinhos. Cabe ao mundo, e a cada um de nós, mudar de direção. Mas, a meu ver, nosso principal desafio ainda é ter esperanças de que isso um dia irá acontecer.