É impossível chamar de vontade o que senti naquele dia. A decisão de largar tudo para viajar o mundo veio de uma só vez. Como um mal súbito. No susto. Sem dúvida ou medo. Eu trabalhava numa grande empresa, ganhava um salário digno, morava num apartamento próprio na cidade grande, tinha um carrinho e já viajava com certa frequência. Ou seja, eu havia chegado lá. Mas, na verdade, a vida que parecia distante e impossível era logo ali. Então percebi que era preciso continuar. E parti.
Desde criança eu me sinto realizado. Usar a roupa surrada que antes vestia meus irmãos e primos mais velhos era sinônimo de crescimento. A falta de carne à mesa era compensada com o tempero de uma mãe cheia de criatividade na cozinha. Não ter uma bicicleta na infância me fez desbravar a pequena Guapimirim, onde nasci e fui criado. Quando fui ao cinema pela primeira vez, aos 14 anos, fiquei tão ansioso que me mijei inteiro um pouco antes da sessão! A escola pública, apesar do calor infernal, salas lotadas e paredes sujas, tinha suas vantagens: muitas horas vagas, gororoba de graça, cigarros e meninas sem tantas frescuras. Meras vulnerabilidades não enxergadas por um adolescente.
Bons tempos aqueles. Mas, havia um caminho a ser percorrido. Antes dos 15 anos eu já trabalhava dia e noite numa rádio comunitária. Ganhava R$ 150 por mês para brincar naquele ofício apaixonante. Passei a comprar minha própria roupa. Depois, uma namorada mais estudiosa me fez despertar para a faculdade. Um horizonte se abriu com o convite de um professor para trabalhar em sua empresa de informática. Para entrar no curso com o qual passei a sonhar, era preciso mudar de cidade. O antigo desejo virou realidade. No auge dos meus 19 anos, lá estava eu morando em Niterói. Logo no primeiro dia vivendo ao lado do Rio de Janeiro vi um pai de família ser morto durante um assalto. Chocou, mas a gente se acostuma com tudo (inclusive com as coisas ruins).
No primeiro ano morei de graça na casa de uma família que havia sido rica um dia. Dormia em um quarto empoeirado do lado de fora. Um luxo para quem já havia dividido alguns metros quadrados com mais três irmãos! Um bairro bacana, gente diferente e uma beira-mar para caminhar à noite. Como estranhamente quase ninguém se falava, passei a trocar cartas com a namorada e os amigos de um passado recente. Não tinha um puto no bolso, mas estava feliz da vida. Logo a mansão foi vendida. Fui morar numa república no Centro com outras 15 pessoas, onde deixei muitos preconceitos. Havia de tudo naquele pequeno e aconchegante inferno. Do 11º andar, passava madrugadas assistindo ao mundo das drogas e da prostituição pela janela. Cenas que aguçavam ainda mais meus instintos de repórter. Passei a gravar tudo, conversava com travestis. Bati à porta de grandes veículos de comunicação. Em vão. Naquela época a chamada “interatividade” ainda era uma teoria. Hoje em dia o vídeo teria virado notícia ao ser publicado nas redes sociais. Mas, alguns anos depois, eu estaria trabalhando num daqueles grandes jornais. Algo inimaginável até então.
No começo da faculdade meu salário não chegava a R$ 500. O suficiente para pagar a mensalidade. O tímido vale-refeição garantia café, almoço e jantar. Comi muita comida de rua barata. Um dia desses voltei no Largo da Carioca, onde com um real já é possível descolar um hambúrguer, para matar a saudade. Nada como poder escolher! Assim que me formei fui direto à Caixa Econômica ver se os R$ 1.400 que já ganhava como trainee eram suficientes para comprar um apartamento de 50 metros quadrados. Eu e a Amanda namorávamos há uns cinco anos e queríamos ficar mais juntos. Ela, uma estagiária de 19 anos, bolsista do ProUni, ganhando R$ 700. A prestação do nosso lar doce lar custaria menos do que uma vaga em qualquer quarto em Niterói. Era uma vida apertada para uma metrópole, mas plena. Jamais recebemos R$ 1 de nossos pais como ajuda de custo. Não era preciso nem cogitado. Além disso, ser independente era uma prioridade pra gente.
Eu e a Amanda caminhamos por vias parecidas. Mas ela sempre soube poupar dinheiro. No muito ou no pouco. Por isso, desde o primeiro mês de casamento separamos parte do que ganhamos. Assim viabilizamos nossas viagens. A primeira aconteceu na lua de mel. Fomos para Penedo com a grana arrecadada durante o tradicional momento da gravata. Ida de carona, volta de ônibus. Foi engraçado, mas não menos romântico! O primeiro Dia dos Namorados fomos de busão novamente. Desta vez para Petrópolis. Um ano depois, em 2011, andamos de avião pela primeira vez. Foi quando também compramos nosso primeiro carrinho via consórcio, um Fiesta 2003. O mesmo que vendemos para viabilizar o ano sabático. Os livros foram doados. Algumas coisas foram mantidas, como o casaquinho branco da Amanda, ainda dos tempos de namoro, que rodou o mundo aquecendo nossos abraços.
Se você chegou até aqui é porque quis saber. Muita gente tem escrito sobre quem toma decisões como a nossa. Gente que fala do que parece não saber, como todos nós costumamos fazer. Os motivos alheios são sempre mais frágeis. Fáceis de questionar. Por isso escrevo um texto tão autorreferencial. Falo por mim, somente. Sem orgulho ou vergonha de minha trajetória. Ela é como é. Como foi. É o que tenho para contar. Sim, pedimos demissão em prol de um sonho não sonhado. Vendemos tudo, rodamos o mundo, voltamos para a nossa cidade natal e empreendemos em algo novo com um capital próximo a zero. Recentemente voltei ao mercado e abri mão de um crachá mais uma vez. Não nasci para simplesmente ocupar posições; preciso estar onde eu quero. Não persigo a felicidade; deixo que ela vá e volte quando quiser, sabendo que a liberdade a tem feito ficar sempre por perto. Não acredito em sucesso, mas em perspectiva e realização. Sim, sou um privilegiado. Sempre soube disso. Caminho olhando para os lados, para o mundo perto de mim que habita nos quintais vizinhos e naquele distante do qual antes só ouvia falar. Nossas desigualdades estão por todo lugar. Na nossa cara. Na dor do outro. Nas desilusões. Nos impedimentos. Nas frustrações. No que move cada um. Na miséria. Na guerra. Largar tudo pelo que se deseja realmente não é para todos. Assim como se importar e compreender as razões do outro.
4 comentários
Mais um texto emocionante e real !!! A sua sinceridade, sua vontade de ser sempre você mesmo, sua autenticidade… você é o cara!!!! Parabéns pelo aniversário, pela determinação e coragem de seguir o que te faz feliz e pelo reconhecimento de que todos os fatos das nossas vidas são lições que nenhuma faculdade pode substituir. Já estou na fila para seu livro autografado…você chega lá, tenho certeza. Beijos meu sobrinho querido.
Tia! Obrigado pelas palavras. O livro sairá em breve, mas sem noite de autógrafos. hahaha Grande beijo
Rafa, Parabéns!!! Embora isso não o mova, saiba que você é merecedor dessas felicitações, pois tudo que escreve é testemunhado pela sua trajetória de vida. Como seu tio, acompanhei toda essa estrada de vida e o que fico mais contente é que você lembra e orgulha-se de tudo. Todas as necessidades, todas as vitórias…se houveram derrotas, serviram para moldar e emolduras as vitórias. Como sou um pouco teimoso, teimo em felicitá-lo. PARABÉNS!!!
Umbergue
Valeu, tio! Obrigado por estar sempre presente, por fazer parte da minha história, pelos abraços e bons momentos compartilhados. Ah, a teimosia é de família. 😉 Beijos, Rafa.